Enquanto eu escrevia o primeiro texto sobre a aventura de chegar até Lalibela, no norte da Etiópia, o Rafael e o William saíram nas ruas para uma caminhada e acabaram fazendo parte de uma das cerimônias mais antigas e tradicionais do mundo. Enquanto eu estava com a cara no computador eles aprendiam um dos valores que muito perdemos nas relações de hoje em dia. Como eu perdi essa oportunidade, aqui entra o Rafael para descrever essa experiência:
Durante a nossa visita a Lalibela, além de visitar as impressionantes igrejas esculpidas na rocha, grande atração daquela cidadezinha, tivemos a chance de tomar um delicioso café! Mas espera, café? O que tem de tão especial nisso a ponto de ser uma parte relevante da viagem? Acontece que esse cafezinho, que muitos de nós em todo o mundo toma, teve origem naquele país. Até hoje se mantém uma cerimônia tradicional para a a sua preparação que muito antes de ser bebida tinham seus grãos moídos fazendo uma pasta para alimentar animais e dar força para guerreiros das tribos africanas.
Começamos a andar pela cidade e passamos por ruazinhas onde várias mulheres trabalhavam secando, torrando e moendo grãos de teff para fazer injera, algumas secavam folhas para fazer uma espécie de cerveja local e outras vendiam especiarias e véus, alguns meninos também se ofereciam para “encerar” nossos sapatos. Como de costume alguns jovens locais começaram a nos seguir, perguntando de onde éramos e disparando o nome Neymar logo depois que falávamos que vínhamos do Brasil. Dois deles demonstraram mais interesse em nos acompanhar e mostrar um pouco da cidade. Fui logo esclarecendo pra eles que eu não poderia contribuir com dinheiro no final do “tour” (já aconteceu de nos cobrarem por uma informaçãozinha antes) e eles me disseram que só queriam mesmo praticar o inglês, que amavam o Brasil e o futebol!
Eles queriam nos mostrar muito e eu ainda estava desconfiado de que teria que retribuir a camaradagem de alguma forma e não quis pedir muita informação, mas perguntei a eles se sabiam de algum um lugar onde eu poderia participar de uma típica cerimônia do café. Eles responderam, em muito bom inglês, que sabiam o melhor lugar para isso, a casa deles! Fiquei meio receoso, mas seria uma ótima oportunidade para ver de perto como vivem os etíopes. Perguntei se não seria muito trabalho para a avó deles parar no meio do dia só para nos preparar o café e eles responderam que eles gostam de mostrar os costumes deles e que não seria problema.
As ruas que já eram estreitas viraram quase becos e ali já não víamos nenhum turista nem pessoas vendendo nada, por onde passávamos cumprimentávamos os locais com “Salam!” (oi em amárico) que respondiam com um sorriso e um “Salam” de volta.
O lugar onde os meninos moram com sua avó era muito simples, a única janelinha que tinha nos dois cômodos da casa ficava fechada e eles insistiram para que ficássemos a vontade e que nos sentíssemos em casa, conversamos um bocado com eles enquanto a senhora preparava tudo. Nos sentimos honrados, a cerimônia do café da Etiópia é uma parte integrante de sua vida social e cultural. Um convite para participar de uma cerimônia de café é considerado um sinal de amizade e respeito e é um excelente exemplo de hospitalidade etíope.
Ela começou lavando o grão verde do café e depois o torrou em uma chapa de ferro que ficavam sob um fogãozinho a lenha, sempre mexendo os grãos para que torrassem de maneira uniforme. Nessa hora o cheirinho de café torrando já era uma delícia.
Depois dos grãos torrados ela os moeu em um pequeno pilão de madeira até que virasse um pó, que era então adicionado à água que fervia em um bule preto, de barro, especialmente feito para se fazer café. A peça conta com um simples sistema de filtrar o café, que depois é servido diretamente dela.
Enquanto o bule com café ficava um pouco mais no fogo, ela acendeu um incenso na sala que tomou conta de todo o ambiente e no chão, colocou uma espécie de mesinha com 5 xícaras e um potinho com açúcar. Pelo chão, de terra batida, tinha uma espécie de grama verde espalhada por todo lado, os meninos me disseram que essa grama faz parte da cerimônia e é pra atrair boas energias. O café estava pronto e a senhora, que eu não consigo chutar uma idade, nos serviu. Tomamos café, eu, William e ela, os meninos não tomaram e disseram que só os mais velhos costumam tomar café. (Mas tinham 5 xícaras, né? Isso quer dizer que tínhamos que tomar duas vezes.)
Essa cerimônia, feita especialmente pra nós, não é privilégio de turista, o “evento” acontece exatamente da mesma maneira em vários lares etiopianos e cada passo e elemento é importante para eles. Também é normal se tomar café em casas de café, encontradas em toda a parte, onde jovens etiopianas montam suas tendas para servir seus clientes, que mesmo sendo comercial elas mantém o mesmo ritual.
Segundo uma lenda, foi um pastor etíope quem percebeu os efeitos do café pela primeira vez enquanto ele observava suas cabras que tiveram uma mudança em seu comportamento após fazer uso de folhas da planta de café em sua alimentação. Depois disso, diz-se que os monges começaram a usar a bebida para ficarem acordados durante suas orações.
Da Etiópia, o café foi levado para a Arábia de lá foi levado primeiramente para o Egito no século XVI e logo depois para Turquia. Na Europa, no século XVII, foi introduzido na Itália e na Inglaterra, mas foram os holandeses que disseminaram o café pelo mundo. Inicialmente transformaram suas colônias nas Índias Orientais em grandes plantações de café e junto com franceses e portugueses transportaram o café para a América. No Brasil o café chegou em 1727 por uma muda contrabandeada da Guiana Francesa.
O café ainda ocupa um lugar sagrado naquele país, apenas o cultivo e colheita processo de café envolve mais de 12 milhões de etíopes e produz mais de dois terços do salário do país. Em um mundo onde o tempo há muito se tornou uma mercadoria, a cerimônia de café etíope nos leva de volta a um tempo em que se valorizava muito mais uma conversa e as relações humanas. Este antigo provérbio descreve da melhor maneira a importância do café na vida etíope: “Buna dabo naw”, que significa: “O café é o nosso pão!”
Interessante
Super bacana e esclarecedora matéria.” Tomei” o café com vocês enquanto lia. Obrigada.
Poxa, encantado com os textos da Etiópia. Sensíveis, bem escritos, informativos e bem humorados. Já virei fã!!
Poxa, valeu pelo comentário xará! Volte sempre!
Oi, Gustavo
tudo bom?
Trabalho com uma cafeteria aqui de Florianópolis e nós estávamos escrevendo para nossas redes sociais sobre essa tradição.
Impossível achar fotos mais bonitas. Será que poderíamos usar uma delas, citando o seu blog?
Obrigada.
Oi Letícia, claro!! 🙂
Cara! muito legal essa descrição da cerimonia do café. Quanta beleza e simplicidade.
Muito obrigado por compartir tantas experiencias!
Oi Aldo, que bom que gostou! Volte sempre! 🙂
Ei Rafael! O seu próprio texto já mostra que não há nada melhor que ter uma experiência cara a cara. Essa interação aguça a memória… o cheiro, o gosto do café, o barulho do grão sendo torrado… fora o momento que você tem com as pessoas e, aí, o relacionamento. Mas não vejo a tecnologia como uma vilã, o problema está na forma que é usada e cabe a cada um perceber isso.
Beijos!
Isso aí Zig! Também acho que cabe a cada um usar a tecnologia com discernimento. Como eu disse ao Lucas, ela pode abrir caminhos para encontros reais e um grande exemplo de como ela tem nos ajudado a conhecer gente, é através do couchsurfing! Obrigado!
Beijos!
Adorei essa experiência! Ô Gusti, você deveria fazer o Rafa escrever mais! E quem sabe o William também não compartilha alguma coisa com a gente no blog? Quanto a tecnologia, acho que ela ajuda em um tipo de relação humana mas atrapalha em outra. No que se diz a facilidade de interagir, a tecnologia é espectacular, pois se não fosse por ela, não poderia estar interagindo com vocês ai no outro canto do mundo. Mas o problema, é que essa interação é somente virtual. Não é com um contato físico onde há envolvimento de sentidos: o cheiro desse café, da gente, o ar quente, as moscas, um aperto de mão, aquele abraço, olhar nosso amigo nos olhos, as nossas diversas reações a sentimentos diferentes através da voz e do corpo, como um sorriso, risos, gargalhadas, ou seja, uma infinidade de coisas sutis únicas ao contato humano pela presença física. Infelizmente, muita gente se dessensibiliza a esse contato por causa do outro que se faz através duma tela, letras e “carinhas” para expressar emoções.
Abração!
Ei Lucas, pois é! Vou fazê-lo escrever mais sim, pode deixar! Essa interação é virtual, mas pode ser um caminho inicial para um encontro real, pessoal. Você por exemplo, leitor fiel do blog, espero poder em breve poder conhecê-lo! E só para constar:
:):):) Um abraço! 😉
Mas você já me conheceu! Eu tava lá naquele dia que você pulou de bungee no Altavila! Foi quando mesmo, 2005, 2006?
É meeesmo! Vc tava lá naquele dia, foi em 2005! Faz tempo hein!!