As estrelas no céu, têm uma intensidade que há tempos eu não via. Talvez a última vez tenha sido no deserto do Atacama, mas apesar do isolamento, aqui está longe de ser um deserto. Enquanto eu as admiro eu penso na jornada do dia anterior e espero que nesse dia, logo chegaremos no nosso destino. Eu realmente não esperava que os percalços do dia chegariam a nos forçar a seguir viagem à pé em meio a tribos desconhecidas africanas.
Consegui tirar essa foto da janela do ônibus. No trajeto vimos várias pessoas armadas entre elas até uma criança!
O brilho das estrelas, junto com uma ou outra luz de velas ou lanterna, deixa a silhueta das etíopes, sentadas de cócoras no chão enlameado, com uma aparência mística. As mulheres estão cobertas de véus e os homens, enrolados em suas túnicas, com seus turbantes, cajados e gigantescos crucifixos.
O som da noite se intensifica com “a prece” dos homens aleijados que lentamente se movem entre as pessoas fazendo um toc-toc com suas pernas de pau. Em Amárico, idioma oficial desse país, eles parecem pedir aos céus que esses três estrangeiros (provavelmente os únicos na cidade inteira) tenham piedade e os ajudem com um trocado. Na escuridão da noite, os olhos se destacam da pele negra que as vezes se viram para nós como que dizendo: “Vocês entenderam? Eles precisam da sua ajuda!”.
Passam um pouco das 4:30 da manhã e aos poucos mais pessoas vão chegando e o burburinho dos pedintes, das preces, dos vendedores tentando vender suas canas, especiarias e folhas alucinógenas, vai se intensificando. No horizonte, a linha das montanhas ofuscadas por uma névoa grossa vai ficando cada vez mais clara e as estrelas vão pouco a pouco se despedindo.
Do lado de dentro dos portões que nos separam dos ônibus que nos levarão até nossos próximos destinos, alguns motores são acionados e as pessoas começam a se juntar esperando pela abertura do portão, ansiosas por garantirem um lugar para sentarem na jornada do dia.
Estamos em Woldya, uma pequena cidade nas montanhas a quase 600 quilômetros ao norte de Addis Ababa, capital da Etiópia. No dia anterior gastamos todo o dia para percorrer essa distância sendo que despertamos às 3:30 da manhã para pegarmos o ônibus (bem confortável, diga-se de passagem) que nos levou até Dessie e de lá fomos espremidos numa van super lotada (provavelmente projetada para pessoas sem pernas) até Woldya. Os joelhos se espremiam no assento da frente e com toda nossa bagagem no nosso colo parecia faltar literalmente espaço para respirar. Chegamos em Woldya cansados e sujos e embora tivéssemos a esperança de chegarmos em Lalibela no mesmo dia, tivemos que procurar um hotel ali mesmo para passarmos a noite. Por ser uma cidade nas montanhas, com o por do sol, a temperatura começou a cair bem e com ela uma chuva que aos poucos foi enlameando a cidade toda.
Após jantarmos omelete com injera (uma massa cinza com aparência de lâmina de espuma envelhecida) voltamos para nosso hotel em que pagamos um pouco mais caro (U$7,40 por quarto) para termos água quente e banheiro privado. Quando fui reclamar que na torneira não saía água, as luzes da cidade se apagaram e acabamos tendo que nos conformar de passar a noite assim: Sem água, sem luz, sem banho. No bar embaixo dos nossos quartos, a música e a festa de sábado a noite seguia com a ajuda de um gerador que fez seu ronco boa parte da noite. Às 4 da manhã estávamos de pé novamente para seguirmos viagem. Nosso ônibus que deveria sair às 5 da manhã, na espera por mais passageiros, só saiu as 8.
O ônibus seguia o zigue-zague das montanhas e ao longo das estradas fomos passando por várias tribos africanas, com muitas tocas redondas construídas de palha, pedra ou pau-a-pique. Os cenários impressionam e apesar de boa parte do terreno ser pedregoso, passamos por muitas terras cultivadas e muitos rebanhos de carneiros, ovelhas e bodes sendo pastoreados por pequenas crianças. Em várias tribos vimos os homens andando armados e até uma criança segurando um rifle eu vi na estrada. Vários mantém um crucifixo grande no pescoço ou na ponta do cajado, no caso dos homens. Diz-se que nessa região o cristianismo ortodoxo é mantido por mais de mil anos.
Enquanto o ônibus parava em algumas vilas, mais gente subia para viajar em pé no ônibus já lotado. Carga era tirada e colocada no teto do ônibus, crianças acenavam e quando viam que tinham 3 estrangeiros dentro do ônibus eles se comunicavam, apontavam, davam tchau, sorriam.
Já passava do meio dia quando ouvimos um estouro e um “ta-ta-ta-ta-ta-ta-ta”. O pneu tinha furado. As nossas pernas pediam para serem esticadas e essa foi a grande chance de dá-las esse conforto, respirar ar puro e “descansar” da viagem.
De pneu trocado e de volta para dentro do ônibus eu pergunto para o William: “E se o pneu furasse de novo?”. A resposta veio com um estouro ainda maior e o grito de uma mulher meia hora depois. O estouro do pneu acabou levantando o piso do ônibus e cortando a perna da mulher que sentava na altura da roda. Ainda que fosse o pneu traseiro a gente viu que não foi tão fácil estabilizar o ônibus e evitar um acidente.
Sem mais pneus sobressalentes, decidimos seguir caminhando até Lalibela, que como disseram, estava a pouco mais de 10 quilômetros montanha acima. Uma pessoa (que disse que caminhar seria perigoso) ofereceu até nos levar de táxi, mas o preço que queria cobrar realmente era bem acima daquilo que podíamos gastar (U$20). Seguimos com os passos firmes, passamos por várias tribos e com um sorrisão no rosto (para disfarçar a apreensão) íamos cumprimentando as crianças e os adultos que ali viviam. Eles cumprimentavam de volta animados e saudosos para nosso alívio e entre as várias frases ininteligíveis em seus idiomas ouvimos, em inglês: “Sejam bem vindos à Terra Santa”.
Lalibela, à que se referiam, estava a menos de 2 horas de caminhada e teríamos muita montanha para subir e descer de mochila nas costas se um homem em seu carro não tivesse parado ao nosso sinal de carona e concordado em nos levar por 100 birrs (U$5). Aqui, onde estamos e onde enfim achamos um hotel com wifi, é uma das cidades mais marcantes da história do cristianismo, além de ser patrimônio da humanidade declarado pela UNESCO. Amanhã estaremos em pé bem cedo para descobrir o porquê.
Ei Gusti, um sorriso constrói pontes. Tenho aprendido que viajar amadurece o ser humano e o deixa mais sensível. O que acha disto?
Com certeza amadurece sim e pode deixar mais sensível porque você começa a ver belezas que não via antes… Mas isso não é regra, depende sempre da atitude quando você viaja. Glória Maria me disse quando eu estava viajando na Ásia: “Vc vai voltar diferente, não necessariamente melhor” Um abraço!
Eita Gu! Que experiência hein. Aprendi há algum tempo que o sorriso pode ser a porta de entrada para começar uma conversa com alguém ou tirar aquela expressão mais negativa de alguém. Como sou de uma profissão da área da saúde isso conta muito! Como é bom receber um sorriso de volta do paciente, essa relação é importantíssima e faz um bem pra ambas as partes. Estou trabalhando em um asilo com muitos idosos com demência e tem momentos que a melhor forma de me comunicar é com um sorriso, sinto que os pacientes confiam mais em mim. Outra coisa tão boa quanto o sorriso é elogiar. Experimente, seu dia vai dar um up!.
Ei Zig! Tem como falar em sorriso e não lembrar de você? Você é mestre nisso e conheço poucos sorrisos tão contagiantes como o seu. Tenho certeza que ele é de fundamental importância no seu trabalho! Um beijo, saudades!
Eh, Gust, depois destas aventuras inesperadas, só restava mesmo o sorriso. é realmente a melhor maneira de resolver algo inusitado Ainda bem que o seu é bem marcante e cativante, mas não precisa mais passar por tantos perrengues né??/ Não vejo a hora de te ver de volta ao Brasil!!!!! Haja assunto para contar heim!!!
Os perrengues são as melhores partes da viagem as vezes! E tem muito mais pela frente, espero! 😛 Um beijão! 🙂
Eu acredito que sim, Gusti, que o sorriso possa evitar confrontos e hostilidades. Penso que para a maioria das culturas, o sorriso seja uma reação natural a sentimentos bons, como felicidade e alegria. Sorrir honestamente para alguém significa que você é amigável e vem com boa fé. Mas é claro, sorriso nem sempre é coisa boa, ele pode ser artificial, forçado, significar vergonha, hipocrisia etc. Mas acho que um bom sorriso modesto e sincero, não aqueles exagerados ou forçados, significa universalmente coisa boa. Pessoalmente, eu sempre notei que sorrir pra alguém freqüentemente provoca um outro sorriso, como se fosse algo contagioso… mas há casos onde gente vira a cara, se envergonha ou finge que não viu… vai entender…
No mais, que aventura hein, Gusti! Lendo esse seu post me senti lendo a história de um aventureiro, explorador, tipo um Indiana Jones da vida ai!
Abraços!
Bom demais ler sua reflexão Lucas! Acho sempre importante manter bem esse nosso cartão de visitas: o sorriso!
Valeu!
Um abraço!